Biblioteca Íntima por Juan Esteves  2019


Em uma espécie de posfácio, o livro Biblioteca Íntima ( Fotô Editorial, 2018) da paulistana Sheila Oliveira traz o poema Sonhei confuso, e o sono foi disperso, escrito em 1933 pelo lisboeta Fernando Pessoa (1888-1935), autor lembrado pelo minimalismo livre e uma exuberância revolucionária, como bem define o escritor e editor americano Richard Zenith, especialista no poeta português e um dos organizadores da memorável mostra Fernando Pessoa, Plural como o Universo, no Museu da Língua Portuguesa de São Paulo em 2010.

Em suas poucas linhas, o poema reflete sobre a ideia de que o universo em que vivemos não é mais nítido que o conjunto de imagens, pensamentos ou fantasias que nos apresentam, para finalizar com “Nada é real, nada em seus vãos moveres Pertence a uma forma definida, Rastro visto de coisa só ouvida.” Poderia ser um epítome do que vemos neste belíssimo livro, além de poder servir como epígrafe. Entretanto, esta não seria preciso visto que sua cadência não se apega somente ao mesmo e sim a um percurso de múltiplas investigações pessoais da autora.

> O livro é resultado do segundo Prêmio Mundie de Fotografia, produzido pelo escritório paulista Mundie e Advogados, patrocinado exclusivamente com seus recursos, sem lei de incentivo, cujo corpo de jurados foi composto pela advogada, fotógrafa e sócia fundadora da empresa, Elinor Cotait, pelo advogado, magistrado e fotógrafo Eduardo Muylaert e pelo fotógrafo e curador Eder Chiodetto. Foram 250 trabalhos inscritos, de fotógrafos de 21 estados brasileiros, com idades entre 18 e 73 anos, examinados em 2018.

O caminho de Sheila Oliveira para o prêmio e seu consequente primeiro livro, começou há algumas décadas. Nascida em 1962, graduou-se em Biblioteconomia e trabalhou na Biblioteca da Televisão Cultura até 1995, quando resolveu mudar oficialmente de rumo para fotografia, uma arte que já praticava e estudava desde 1988. Segundo a própria, uma fotógrafa cuja delicadeza aflora ao primeiro encontro, ela “sempre teve um jeito próprio de ver e de fazer as coisas acontecerem e também acreditar que o sentimento é o motor para suas realizações”.

> Na direção do ontológico, no entanto, sua imagética vem acompanhada por sua formação, que provém um suporte para uma pesquisa constante, bem como suas afinidades se debruçam ao apelo gráfico, do que podemos chamar de “livro objeto” como define o curador Chiodetto, com quem ela vem estudando desde 2017.

Em meio ao gerenciamento de um estúdio criado em 2002, voltado para imagens de alimentos, sua inquietude despertada na convivência com os livros a levou a buscar um aprendizado voltado para uma publicação mais autoral com os pernambucanos Alexandre Belém e Georgia Quintas e também com o paulista Iatã Cannabrava. Estamos aqui falando sobre um título perfeito: Biblioteca Íntima.

Segundo Fabiana Bruno, doutora em Multimeios pelo Instituto de Artes da Unicamp entre outros títulos e Eder Chiodetto, ambos orientadores do Ateliê Fotô, “pensar o nada na metáfora de Fernando Pessoa, é transcender o pensamento e encontrar, na busca de uma outra possível instância, a noção de ser e estar. Eles lembram da primeira frase do texto V, do poema O guardador de Rebanhos, publicado em 1925: "Há metafísica bastante em não pensar em nada” do seu heterônimo Alberto Caeiro.

> Fernando Pessoa declarou que o poema todo, escrito em 1915, foi composto por seu alter ego Caeiro em uma única noite de insônia. Entre os seus 49 textos, esta frase é uma das que, sem dúvida, foram mais reproduzidas na literatura universal. Ao pensarmos no caráter mais metafísico da mesma, podemos voltar ao primeiro poema do posfácio de Biblioteca Íntima com seu “e o sono foi disperso”, para nos aprofundarmos no pensamento contrário de que, sim, o livro traz habilmente muito de tudo, uma experiência construída em sucessivas séries trabalhadas pela autora. Como os mesmos editores também afirmam : Sheila verte seu corpo em sua própria câmera escura a projetar um olhar de dentro.“

Biblioteca Íntima é uma sucessão de várias narrativas que como a autora diz, "vieram sendo organizadas ao longo de muitos anos”, quando a mesma se volta para a imagem que considera arte. Submersos, de 2011, é uma série onde a fotógrafa trabalha com processos históricos, o Van Dick Brown e o Cianotype, na qual podemos notar algumas referências nas imagens do livro, como a “mandala vitruviana” que está na capa em hot estamp dourado. As relações gestuais também são encontradas em Dores da Alma, do mesmo ano.

> O projeto gráfico elaborado pelo designer Fábio Messias, utilizando os papéis Munken Pure e Hibright, ambos de gramatura mais leve, escorados por uma impressão precisa da gráfica Ipsis, cria um sustentáculo que ampara sobreposições com referências temporais a outros livros, se encaixando em uma capa-estojo de fácil articulação que acomoda a fragilidade do miolo impresso, quase como uma translação da imagens representadas pelas séries em sua maioria de autorretratos com alegorias femininas, interrompidas somente por um único momento masculino, protagonizado por seu filho.

> Sheila Oliveira explica que seu universo são metáforas do corpo físico e do desprendimento do conteúdo para se chegar ao seu âmago. Um percurso feito por imagens que se apoiam em parábolas que geram novos entendimentos, como na série Anotações Herméticas, de 2010/2014, onde surge a imagem da concha que nos remete a um caramujo hermitão e ao mesmo tempo a uma amonita mineral, ambas nos sugerindo a interioridade e a permanência simultaneamente. Imagens permeadas por outras imagens, assim como sua própria performance diante da câmera.

Como acertam os editores, “sua obra é invariavelmente uma reflexão obstinada a vasculhar, nas dobras da existência, o que nos é essencial.” Deste modo lembramos dos ensaios dos americanos Dan Stabrook, com seus instrospectivos processos alternativos e Duane Michals, com suas sobreposições, representações entre textos e imagens, desprendimentos corporais, exercitados desde os anos 1960 e encontrados no belíssimo livro Sequences ( Doubleday, 1970).

Embora, diametralmente diferentes na expressão gráfica pelo uso exemplar que a autora faz da cor -ainda que quase sempre sejam imagens monocromáticas, a analogia se encontra nestas inúmeras referências e na composição staged utilizada. Ou como melhor citado no livro, o “mise-en-scène pendular no átimo que se estende entre o ser e o deixar de ser.”

> “Meu pensamento é refletido na imagem”, diz a fotógrafa, no que se apresenta como um ideal intelectual amparado pela sua experimentação sensorial. A “representação do sentido” como ela diz, encontrada na série Dores da Alma, nos fala da transmutação, do desapego corporal, uma referência barroca pela intensidade da cor, quando em uma magnífica imagem ela mesma se desdobra em duas pessoas. Outra referência ao espiritual como esta pose análoga ao corolário bíblico é sustentada por outra mandala vitruviana como um halo (Glória) da iconografia religiosa ampla como a budista ou católica.

Em sua síntese de conceito-imagem, a fotógrafa declara sua amplitude filosófica e suas conexões com as diferentes formas. Um booklet traz objetos que vão de chaves a um dicionário, onde algumas páginas estão reproduzidas no volume principal. Ela também assume a sua atração pela pesquisa e por fazer “analogias o tempo todo”, os mergulhos nas mais diferentes religiões e o interesse pelo poeta Pessoa ou pelo renascentista Leonardo Da Vinci ( 1452-1519), uma espécie de “bibliomania” na qual sua arte se acomoda com maestria.

Certamente o livro representa uma rara virtude em tempos contemporâneos, completada por um virtuosismo intrínseco a obra da fotógrafa cujos desdobramentos nos fazem pensar em nós mesmos, circunstâncias tão raras de serem encontradas no nosso próprio imaginário quanto no exíguo espaço intelectual em que vem se sustentando a arte estabelecida.


Juan Esteves  - Juan Esteves Martins (Santos, São Paulo, 1957). Fotógrafo, jornalista, crítico de fotografia, educador, curador. Notabiliza-se por uma vasta produção no gênero do retrato ao documentar, a partir dos anos 1990, grandes nomes das artes plásticas do Brasil no século XX.

Flutuações e Dores da Alma por Georgia Quintas  2012


“Flutuações (2011) e Dores da Alma (2010-2011) são os dois trabalhos apresentados a partir de pesquisa sobre a produção da fotógrafa paulistana Sheila Oliveira (1968). A linguagem madura desta fotógrafa é estabelecida harmonicamente por meio de estética equilibrada e delicada plasticidade.

Sheila postula a imagem fotográfica como fluxo de apreensões de narrativas que submergem de formulações a partir da pose e da encenação. Nesses dois trabalhos, o efeito visual é consequência de discursos imaginários na mesma proporção que os elementos parecem devolver a sensação de imagens sonhadas e agora enfim fotografadas.”


Georgia Quintas - É coordenadora da Pós-graduação em Fotografia da FAAP. Professora e pesquisadora no campo da teoria, filosofia e crítica da imagem fotográfica, tem doutorado em Antropologia pela Universidade de Salamanca (Espanha), mestrado em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e especialização em História da Arte pela Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP/SP. Co-autora do site Perspectiva e Olhavê. Autora do livro “Man Ray e a Imagem da Mulher” (2008).

Poética dos Materiais por Oscar D'Ambrosio  2010


Há uma poética nos materiais. A criação de imagens está plenamente ligada ao domínio e a segurança no uso dos elementos que integram uma obra de arte. De fato, quando se escolhe um suporte e uma técnica, ocorre a materialização de um pensamento que vem da alma. 

A técnica em si mesma é inerte. É a alma que molda os procedimentos artísticos. Nesse aspecto, o trabalho plástico de Sheila Oliveira traz uma série de indagações. A principal é um dos temas fundamentais da arte contemporânea, que está no questionamento das rígidas fronteiras entre os procedimentos.

A artista parte de geralmente de auto-retratos. Essas representações de si mesma, inicialmente fotografadas, ganham novas dimensões pelos métodos de revelação e pelas maneiras como são utilizadas sobre tecido ou papel  feito à mão. O jogo se instaura na forma como o diálogo se dá entre as tonalidades de branco e preto.

As obras ganham mistério também pela presença de interferências, como mandalas recortadas ou o aproveitamento de recursos do desenho e da pintura. Os conjuntos exploram a capacidade de cada observador de interrogar cada resultado como um processo de interpretar o mundo com lirismo e delicadeza.


Oscar D'Ambrosio - Doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Mackenzie e mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unesp, integra a Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA- Seção Brasil).